quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Degraus

Os nervos varrem-me a memória, tiram-me as palavras da boca, o discurso ensaiado esvai-se em mágoas e culpas, subo as escadas e em cada degrau, que subo lento, tento memorizar as frases que preparei

não me fizeste feliz
detesto a maneira como comes
estou há demasiados anos presa a ti como um cão, obediente e fiel
quero ser livre, quero outros homens, quero dormir até tarde e deixar de vestir
roupas como se tivesse 50 anos

mais um degrau e abençoou a minha vida falhada, o meu ventre estragado, não me deu filhos, eu também não os queria, não quero réplicas de ti, és igual à tua mãe e eu odeio a tua mãe, falhei como cristã só tenho ódio dentro de mim, aproximo-me do patamar e da luz que diz que me esperas no quarto que cheira ao jornal que lês, nunca consegui que perdesses esse hábito

sei que me esperas na mesma posição de sempre, sentado, recostado nas tuas duas almofadas, de rosto rígido e óculos na ponta do nariz, sempre demasiado composto

deito-me suavemente como suavemente se deitam os cães aos pés dos donos, a cama quente chama-me pela infância e pelo conforto de ter alguém que olhe por nós, arrumas o jornal e antes de apagar a luz dás-me um beijo, um beijo igual a todas as noites que me recompensa como uma festa no lombo

abro a boca para finalmente libertar a angústia que me acorrenta. olhas-me sério enquanto te digo firme e convicta: não sei viver sem ti.

Ana Alves Oliveira