quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Coração da Casa

A vida daquela casa nascia na cozinha.
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.
Mas era precisamente desse amor que fugia.
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.
Ana Alves Oliveira