quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Diário de um internamento

Lisboa, 17 de Janeiro de 2012

Hoje ganhei o dia. Chegou a D. Margarida. A D. Margarida é uma velhinha simpática, doce, calma, com olhar meigo. Lúcida, articulada. A D. Margarida já não tem as supra-renais. Se, por um lado, é assustador vê-la aqui, internada de urgência por causa de um simples diarreia e alteração dos valores do potássio, conforta-me vê-la, com aquela idade, ainda tão viva.
Por outro lado, o pitoresco e o grotesco continuam de mãos dadas neste hospital. Fui fazer um ECG, exame mais que corriqueiro e indolor. Na solidão enorme e fechada do elevador uma mulher, sozinha, chorava a morte ainda quente do marido. Na banca da Fundação do Gil estava hoje a Dominatrix que tentava, em vão, vender bonecos inocentes aos transeuntes. Talvez se vestisse o pobre Gil de látex poderia ter melhores resultados. A D. Graça, depois de calma e plácida manhã, entrou no seu auge de delírio no período da tarde. Ao mesmo tempo que todos rimos, faz-me pena. Mesmo que ela, mergulhada na sua demência senil, visitando o passado levando o presente, não se aperceba do seu estado de degradação, certo é que, quando nova e lúcida, não desejaria tanta solidão para o fim dos seus dias. Porque ninguém quer. O que haverá de verdadeiro na mágoa dela relativamente aos tios, à mãe morta, quanto amor verdadeiro existirá nela pelos avós e pelo seu aviador Paulo que por aqui passa todos os dias? A velhota do rádio a pilhas lá da cama do fundo foi bailarina, cantora lírica e advogada. Qual seria a ordem dos seus sonhos de infância? O guineense matulão ajuda a rapariga meia tonta ao jantar. Parte-lhe a carne aos pedacinhos como se o fizesse a uma filha. Não são pai e filha, são dois estranhos que tiveram o infortúnio de serem brindados com uma doença crónica e que tiveram a fortuna de se juntarem aqui para se apoiarem. O guineense matulão do pijama azul, fio de ouro ao pescoço e a rapariga meia tonta, desdentada, um par improvável no mundo real.
O José Félix acabou de me ligar, depois de parar o carro. Durante a conversa um homem resolveu urinar para cima do carro. Afinal o pitoresco e o grotesco também existem lá fora. Ou então transmitiu-se juntamente com o telefonema. É preciso ter muito cuidado com as ligações que se estabelecem com hospitais.
A D. Celeste já iniciou a gritaria “enfermeira, tenho xi-xi-xi-xi!”, já quase tudo adormeceu no quarto (são 8.30 da noite), tenho já o braço esquerdo negro. E o Pedro ainda não disse nada. O Alexandre ligou-me de manhã a desejar bom-dia – a primeira voz conhecida aqueceu-me o dia. A Rita e a Cláudia estiveram cá.
Estou a ouvir as Variações Goldberg e imagino que, no corredor, está um piano de cauda e um pianista de casaca de abas de grito a tocar. Isto até seria verdadeiro se estivesse num filme de Fellini. Mas, apesar do pitoresco e do grotesco, este é o mundo real.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Coração da Casa

A vida daquela casa nascia na cozinha.
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.
Mas era precisamente desse amor que fugia.
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.
Ana Alves Oliveira

terça-feira, 5 de outubro de 2010


OLEO SOBRE LIENZO

Nunca mais o voltou a ver. Nunca mais lhe falou. A última vez que o fez foi para lhe dizer isso mesmo: «Nunca mais te falo. Para mim morreste, não existes mais». E assim foi. A ausência doeu-lhe mais do que doença. A vontade quase indomável de voltar atrás, de lhe dar novamente existência, queimava-lhe os movimentos. Um pêndulo emocional oscilava entre amá-lo outra vez ou matá-lo de vez. Tinha que pôr espaço entre os dois, já que o tempo nada distancia. O tempo tem destas coisas – não cria distância. Precisava de espaço.
Nunca acreditou que o amava porque sempre soube que ele era incapaz de amar. E também não queria amá-lo porque tudo nele lhe dizia que não valia a pena. Mas, infelizmente, amou-o. Caiu no lugar-comum do amor impossível. Se não soubesse que tudo não tinha passado de um jogo sórdido, poderia até afirmar que existiram bons momentos – momentos de carinho, amor talvez, momentos de paixão. Na altura iludia-se e, por instantes, até acreditava. Ou fingia que acreditava. Por vezes o amor fingido é melhor que o vazio. Aproveitava bem esses escassos momentos em que tudo parecia perfeito – uma forma de compensar as longas inquietações e angústias que se lhes seguiam. Onde estará ele? E o que estará a fazer? Com quem? O que pensará ele? O que quer de mim?
A falsidade é tão escorregadia como o óleo. Parece que fica para sempre, mas aos poucos vai-se escoando por onde pode até nada ficar senão uma mancha. Apenas nas telas é possível fixar a tinta de forma permanente. Na vida não. Gradualmente o colorido a óleo se foi esbatendo, fugindo por frestas e aberturas, desvendando aquilo que ele era. Às mentiras perdeu-lhes a conta, os enganos e falsidades foram em tal quantidade que, se fossem telas, nem todos os museus do mundo poderiam albergá-las. A isso se juntou a crueldade. Haverá algo mais cruel que magoar pelo prazer de magoar alguém?
Era o início do Verão. Foram à praia. Duas vezes apenas. Nunca se tinha sentido tão livre, tão plena de uma felicidade até então desconhecida. Tudo parecia certo, perfeito. A praia quase deserta. O Sol quente. O mar frio. Os seus corpos nus. As imagens apenas parecem verdadeiras quando vistas à distância – no tempo e no espaço. Faz agora um ano que foram aqueles dois dias à praia. Apenas dois dias, umas poucas horas. E agora, um ano depois, noutro espaço, a felicidade dela retratada num quadro desconhecido. A memória dói sempre mais nos quadros. Era aquela uma felicidade verdadeira?
Queria viver em frente ao quadro. Eternizar o momento. A única forma de viver aquele amor impossível – estática, imutável e suficientemente distante e irreal para não se destruir outra vez. Para não se partir toda.
Susana Caldeira Cabaço

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Degraus

Os nervos varrem-me a memória, tiram-me as palavras da boca, o discurso ensaiado esvai-se em mágoas e culpas, subo as escadas e em cada degrau, que subo lento, tento memorizar as frases que preparei

não me fizeste feliz
detesto a maneira como comes
estou há demasiados anos presa a ti como um cão, obediente e fiel
quero ser livre, quero outros homens, quero dormir até tarde e deixar de vestir
roupas como se tivesse 50 anos

mais um degrau e abençoou a minha vida falhada, o meu ventre estragado, não me deu filhos, eu também não os queria, não quero réplicas de ti, és igual à tua mãe e eu odeio a tua mãe, falhei como cristã só tenho ódio dentro de mim, aproximo-me do patamar e da luz que diz que me esperas no quarto que cheira ao jornal que lês, nunca consegui que perdesses esse hábito

sei que me esperas na mesma posição de sempre, sentado, recostado nas tuas duas almofadas, de rosto rígido e óculos na ponta do nariz, sempre demasiado composto

deito-me suavemente como suavemente se deitam os cães aos pés dos donos, a cama quente chama-me pela infância e pelo conforto de ter alguém que olhe por nós, arrumas o jornal e antes de apagar a luz dás-me um beijo, um beijo igual a todas as noites que me recompensa como uma festa no lombo

abro a boca para finalmente libertar a angústia que me acorrenta. olhas-me sério enquanto te digo firme e convicta: não sei viver sem ti.

Ana Alves Oliveira

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A propósito da noite dos Museus....

As “pessoas-museu”

Um Museu é um movimento contínuo de gente que circula entre peças, pedaços de vidros dentro de vitrines, telas em óleo ressequido, traços feitos há muito tempo. Um Museu é uma troca de memórias, entre as pessoas e os artistas.

Por se achar que um museu é um lugar de coisas paradas, esquecidas, velhas, antigas e gastas, no fundo de memórias, dizem que as pessoas que vivem das suas memórias são “pessoas-museu”. E que isso é mau. Mas eu não acho.

Era bom que cada um de nós fosse um Museu, como se cada um tivesse um espaço onde poderia ir preenchendo com as suas memórias, ao longo da vida. Como se a nossa identidade fosse servindo de quadros, de peças ou de melodias.

As pessoas entravam e circulavam, contemplando a vida de cada um. Haveria um percurso, um guia que indicava os principais pontos de interesse.

“Aqui foi quando a Rita deu um valente tralho e ficou com uma marca na canela da perna direita. Combinou uma corrida com os amigos, em que o último a chegar ficava de fora.” – Vemos um bocado de calça de ganga toda rasgada, sangue, a corda de saltar que ia na mão e cheira a terra seca.

“Aqui foi quando subiu ao palco do São Carlos e perdeu a sapatilha a meio da coreografia. ” – Vemos as sapatilhas todas coçadas e uma sem a fita, sentimos o cheiro da resina e ouvimos um Adagio como nota de fundo.

“ Aqui estão os 56 caixotes de tralha que a Rita deitou fora na última mudança, há 2 meses. Ela quer lançar um alerta para a quantidade de lixo que vive dentro da nossa casa.” – Vemos os caixotes e o manifesto anti-tralha pendurado na parede.

Gostava de ver um Museu de pessoas, pessoas vivas. Quadros de memórias férteis em sons, cheiros e sentimentos, expressos em tonalidades diferentes – e para os daltónicos em melodias.

Todo o homem, artista ou não, vive de memórias, é a partir delas que projecta a sua vida.

As memórias são o produto da criação de cada um.

Se toda a forma de arte encontra o seu “prazo de validade” dentro de um Museu, pois é lá que sobrevive, permanece e avança e se todo o homem é fazedor de arte, então todos somos “pessoas-museu”.

Rita Saldanha – 14 de Maio de 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Vislumbres de Museus

Pedem-me para falar de museus. Mas se já passei por tantos, como falar deles? Devo falar de todos ou escolher apenas um? Falar dos museus da minha infância ou da minha idade adulta? Os portugueses ou os estrangeiros? Temáticos ou generalistas? Os que visitei ou os que quero ainda visitar? Pedem-me demasiado.
Por isso talvez fale daqueles pequenos detalhes que me ficaram na memória para sempre quando oiço a palavra museu. Como o deslumbre de menina no Museu dos Coches pela primeira vez. Afinal de contas eles existiam mesmo, não eram invenção dos contos de fadas. Infelizmente, nenhum deles se transformava em abóbora, mas, verdade seja dita, também não os vi depois da meia-noite, por isso nunca se sabe.
Ligado às minhas memórias da infância ficará para sempre o Museu do Traje. As visitas eram frequentes, talvez porque ficava perto de casa e porque os meus pais achavam que duas meninas certamente gostavam de ver roupa. E gostavam. E sonhavam em ter aquelas roupas para vestir as bonecas, copiavam para o papel os trajes e com eles vestiam bonecas de papel.
Assustadora foi a minha primeira visita à Torre de Belém. Disseram-me, já não me lembro quem, que aprisionavam pessoas lá em baixo e quando vinha a maré elas morriam afogadas. Não descansei enquanto não saí de lá e a única coisa de que me lembro é do medo de ali ficar presa também e ser levada pela maré.
Alargando os horizontes, a minha primeira visita ao Museu do Louvre ficou marcada pela desilusão. Afinal a Monalisa era pequenina e não era nada de especial. Especial mesmo era a quantidade inacreditável de japoneses e máquinas fotográficas à volta dela. Maravilhosas as salas dedicadas ao Antigo Egipto. Mais tarde, já adulta, revi essa desilusão e maravilha, desta vez com entrada fulgurante pela pirâmide, mesmo a tempo de escapar de uma violenta tempestade de Verão.
Se os museus nos surpreendem na infância, também isso sucede na idade adulta. Foi isso que me aconteceu no Museu dos Instrumentos Musicais em Bruxelas, onde descobri, num canto escondida, a oficina de construção de violinos de um personagem de um conto que tinha escrito. E não é que até tinha uma fotografia dele e tudo?
E se continuo a puxar pela minha memória certamente virão mais episódios, sentimentos, museus (eles são tantos!) e até contrariedades, como a antipatia dos funcionários da Neue Gallery em Nova Iorque por causa de uma simples garrafa de água. Mas essas memórias tristes não são para um dia como hoje, por isso fico-me por aqui.

sábado, 15 de maio de 2010

Hotel

À Susana Caldeira Cabaço, pelo seu gosto por histórias de Hotel

Marie estava sentada num dos chesterfield capitoné do bar do Hotel junto ao piano vestido de cauda preta quando a viu entrar, em direcção à recepção. Os tons verdes do mármore das paredes contrastavam vivamente com o tom tijolo do vestido que envergava, destacando-a ainda mais. A sombrinha na mão direita, de cujo pulso pendia uma bolsa debruada a vidrilhos e uma gola de vison preto compunham o retrato. Sarah continuava a não deixar ninguém indiferente à sua passagem. Não se sabia dizer se era ela ou uma uma das suas personagens que ali estava naquele preciso momento e que não deixava ninguém indiferente. Nem Marie. Marie, no seu vestido preto, singelo, sem adornos, como convém a um cientista que procura chegar à verdade alquímica. E no entanto, estas duas mulheres, tão diferentes entre si, eram feitas da mesma massa que nos une. Um corpo que anseia pelo final do dia, pelo par de braços fortes que o enleie, pelo beijo na fronte, pelas palavras que dizem a verdade mentido - que o amam e que vai tudo correr bem.


Marie Curie e Sarah Bernhardt ficaram hospedadas no Hotel Metropole, Bruxelas, em datas diferentes sendo este, por isso, um encontro ficcionado.

Pedro Diniz