segunda-feira, 24 de maio de 2010

A propósito da noite dos Museus....

As “pessoas-museu”

Um Museu é um movimento contínuo de gente que circula entre peças, pedaços de vidros dentro de vitrines, telas em óleo ressequido, traços feitos há muito tempo. Um Museu é uma troca de memórias, entre as pessoas e os artistas.

Por se achar que um museu é um lugar de coisas paradas, esquecidas, velhas, antigas e gastas, no fundo de memórias, dizem que as pessoas que vivem das suas memórias são “pessoas-museu”. E que isso é mau. Mas eu não acho.

Era bom que cada um de nós fosse um Museu, como se cada um tivesse um espaço onde poderia ir preenchendo com as suas memórias, ao longo da vida. Como se a nossa identidade fosse servindo de quadros, de peças ou de melodias.

As pessoas entravam e circulavam, contemplando a vida de cada um. Haveria um percurso, um guia que indicava os principais pontos de interesse.

“Aqui foi quando a Rita deu um valente tralho e ficou com uma marca na canela da perna direita. Combinou uma corrida com os amigos, em que o último a chegar ficava de fora.” – Vemos um bocado de calça de ganga toda rasgada, sangue, a corda de saltar que ia na mão e cheira a terra seca.

“Aqui foi quando subiu ao palco do São Carlos e perdeu a sapatilha a meio da coreografia. ” – Vemos as sapatilhas todas coçadas e uma sem a fita, sentimos o cheiro da resina e ouvimos um Adagio como nota de fundo.

“ Aqui estão os 56 caixotes de tralha que a Rita deitou fora na última mudança, há 2 meses. Ela quer lançar um alerta para a quantidade de lixo que vive dentro da nossa casa.” – Vemos os caixotes e o manifesto anti-tralha pendurado na parede.

Gostava de ver um Museu de pessoas, pessoas vivas. Quadros de memórias férteis em sons, cheiros e sentimentos, expressos em tonalidades diferentes – e para os daltónicos em melodias.

Todo o homem, artista ou não, vive de memórias, é a partir delas que projecta a sua vida.

As memórias são o produto da criação de cada um.

Se toda a forma de arte encontra o seu “prazo de validade” dentro de um Museu, pois é lá que sobrevive, permanece e avança e se todo o homem é fazedor de arte, então todos somos “pessoas-museu”.

Rita Saldanha – 14 de Maio de 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Vislumbres de Museus

Pedem-me para falar de museus. Mas se já passei por tantos, como falar deles? Devo falar de todos ou escolher apenas um? Falar dos museus da minha infância ou da minha idade adulta? Os portugueses ou os estrangeiros? Temáticos ou generalistas? Os que visitei ou os que quero ainda visitar? Pedem-me demasiado.
Por isso talvez fale daqueles pequenos detalhes que me ficaram na memória para sempre quando oiço a palavra museu. Como o deslumbre de menina no Museu dos Coches pela primeira vez. Afinal de contas eles existiam mesmo, não eram invenção dos contos de fadas. Infelizmente, nenhum deles se transformava em abóbora, mas, verdade seja dita, também não os vi depois da meia-noite, por isso nunca se sabe.
Ligado às minhas memórias da infância ficará para sempre o Museu do Traje. As visitas eram frequentes, talvez porque ficava perto de casa e porque os meus pais achavam que duas meninas certamente gostavam de ver roupa. E gostavam. E sonhavam em ter aquelas roupas para vestir as bonecas, copiavam para o papel os trajes e com eles vestiam bonecas de papel.
Assustadora foi a minha primeira visita à Torre de Belém. Disseram-me, já não me lembro quem, que aprisionavam pessoas lá em baixo e quando vinha a maré elas morriam afogadas. Não descansei enquanto não saí de lá e a única coisa de que me lembro é do medo de ali ficar presa também e ser levada pela maré.
Alargando os horizontes, a minha primeira visita ao Museu do Louvre ficou marcada pela desilusão. Afinal a Monalisa era pequenina e não era nada de especial. Especial mesmo era a quantidade inacreditável de japoneses e máquinas fotográficas à volta dela. Maravilhosas as salas dedicadas ao Antigo Egipto. Mais tarde, já adulta, revi essa desilusão e maravilha, desta vez com entrada fulgurante pela pirâmide, mesmo a tempo de escapar de uma violenta tempestade de Verão.
Se os museus nos surpreendem na infância, também isso sucede na idade adulta. Foi isso que me aconteceu no Museu dos Instrumentos Musicais em Bruxelas, onde descobri, num canto escondida, a oficina de construção de violinos de um personagem de um conto que tinha escrito. E não é que até tinha uma fotografia dele e tudo?
E se continuo a puxar pela minha memória certamente virão mais episódios, sentimentos, museus (eles são tantos!) e até contrariedades, como a antipatia dos funcionários da Neue Gallery em Nova Iorque por causa de uma simples garrafa de água. Mas essas memórias tristes não são para um dia como hoje, por isso fico-me por aqui.

sábado, 15 de maio de 2010

Hotel

À Susana Caldeira Cabaço, pelo seu gosto por histórias de Hotel

Marie estava sentada num dos chesterfield capitoné do bar do Hotel junto ao piano vestido de cauda preta quando a viu entrar, em direcção à recepção. Os tons verdes do mármore das paredes contrastavam vivamente com o tom tijolo do vestido que envergava, destacando-a ainda mais. A sombrinha na mão direita, de cujo pulso pendia uma bolsa debruada a vidrilhos e uma gola de vison preto compunham o retrato. Sarah continuava a não deixar ninguém indiferente à sua passagem. Não se sabia dizer se era ela ou uma uma das suas personagens que ali estava naquele preciso momento e que não deixava ninguém indiferente. Nem Marie. Marie, no seu vestido preto, singelo, sem adornos, como convém a um cientista que procura chegar à verdade alquímica. E no entanto, estas duas mulheres, tão diferentes entre si, eram feitas da mesma massa que nos une. Um corpo que anseia pelo final do dia, pelo par de braços fortes que o enleie, pelo beijo na fronte, pelas palavras que dizem a verdade mentido - que o amam e que vai tudo correr bem.


Marie Curie e Sarah Bernhardt ficaram hospedadas no Hotel Metropole, Bruxelas, em datas diferentes sendo este, por isso, um encontro ficcionado.

Pedro Diniz