quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Coração da Casa

A vida daquela casa nascia na cozinha.
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.
Mas era precisamente desse amor que fugia.
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.
Ana Alves Oliveira

terça-feira, 5 de outubro de 2010


OLEO SOBRE LIENZO

Nunca mais o voltou a ver. Nunca mais lhe falou. A última vez que o fez foi para lhe dizer isso mesmo: «Nunca mais te falo. Para mim morreste, não existes mais». E assim foi. A ausência doeu-lhe mais do que doença. A vontade quase indomável de voltar atrás, de lhe dar novamente existência, queimava-lhe os movimentos. Um pêndulo emocional oscilava entre amá-lo outra vez ou matá-lo de vez. Tinha que pôr espaço entre os dois, já que o tempo nada distancia. O tempo tem destas coisas – não cria distância. Precisava de espaço.
Nunca acreditou que o amava porque sempre soube que ele era incapaz de amar. E também não queria amá-lo porque tudo nele lhe dizia que não valia a pena. Mas, infelizmente, amou-o. Caiu no lugar-comum do amor impossível. Se não soubesse que tudo não tinha passado de um jogo sórdido, poderia até afirmar que existiram bons momentos – momentos de carinho, amor talvez, momentos de paixão. Na altura iludia-se e, por instantes, até acreditava. Ou fingia que acreditava. Por vezes o amor fingido é melhor que o vazio. Aproveitava bem esses escassos momentos em que tudo parecia perfeito – uma forma de compensar as longas inquietações e angústias que se lhes seguiam. Onde estará ele? E o que estará a fazer? Com quem? O que pensará ele? O que quer de mim?
A falsidade é tão escorregadia como o óleo. Parece que fica para sempre, mas aos poucos vai-se escoando por onde pode até nada ficar senão uma mancha. Apenas nas telas é possível fixar a tinta de forma permanente. Na vida não. Gradualmente o colorido a óleo se foi esbatendo, fugindo por frestas e aberturas, desvendando aquilo que ele era. Às mentiras perdeu-lhes a conta, os enganos e falsidades foram em tal quantidade que, se fossem telas, nem todos os museus do mundo poderiam albergá-las. A isso se juntou a crueldade. Haverá algo mais cruel que magoar pelo prazer de magoar alguém?
Era o início do Verão. Foram à praia. Duas vezes apenas. Nunca se tinha sentido tão livre, tão plena de uma felicidade até então desconhecida. Tudo parecia certo, perfeito. A praia quase deserta. O Sol quente. O mar frio. Os seus corpos nus. As imagens apenas parecem verdadeiras quando vistas à distância – no tempo e no espaço. Faz agora um ano que foram aqueles dois dias à praia. Apenas dois dias, umas poucas horas. E agora, um ano depois, noutro espaço, a felicidade dela retratada num quadro desconhecido. A memória dói sempre mais nos quadros. Era aquela uma felicidade verdadeira?
Queria viver em frente ao quadro. Eternizar o momento. A única forma de viver aquele amor impossível – estática, imutável e suficientemente distante e irreal para não se destruir outra vez. Para não se partir toda.
Susana Caldeira Cabaço

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Degraus

Os nervos varrem-me a memória, tiram-me as palavras da boca, o discurso ensaiado esvai-se em mágoas e culpas, subo as escadas e em cada degrau, que subo lento, tento memorizar as frases que preparei

não me fizeste feliz
detesto a maneira como comes
estou há demasiados anos presa a ti como um cão, obediente e fiel
quero ser livre, quero outros homens, quero dormir até tarde e deixar de vestir
roupas como se tivesse 50 anos

mais um degrau e abençoou a minha vida falhada, o meu ventre estragado, não me deu filhos, eu também não os queria, não quero réplicas de ti, és igual à tua mãe e eu odeio a tua mãe, falhei como cristã só tenho ódio dentro de mim, aproximo-me do patamar e da luz que diz que me esperas no quarto que cheira ao jornal que lês, nunca consegui que perdesses esse hábito

sei que me esperas na mesma posição de sempre, sentado, recostado nas tuas duas almofadas, de rosto rígido e óculos na ponta do nariz, sempre demasiado composto

deito-me suavemente como suavemente se deitam os cães aos pés dos donos, a cama quente chama-me pela infância e pelo conforto de ter alguém que olhe por nós, arrumas o jornal e antes de apagar a luz dás-me um beijo, um beijo igual a todas as noites que me recompensa como uma festa no lombo

abro a boca para finalmente libertar a angústia que me acorrenta. olhas-me sério enquanto te digo firme e convicta: não sei viver sem ti.

Ana Alves Oliveira

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A propósito da noite dos Museus....

As “pessoas-museu”

Um Museu é um movimento contínuo de gente que circula entre peças, pedaços de vidros dentro de vitrines, telas em óleo ressequido, traços feitos há muito tempo. Um Museu é uma troca de memórias, entre as pessoas e os artistas.

Por se achar que um museu é um lugar de coisas paradas, esquecidas, velhas, antigas e gastas, no fundo de memórias, dizem que as pessoas que vivem das suas memórias são “pessoas-museu”. E que isso é mau. Mas eu não acho.

Era bom que cada um de nós fosse um Museu, como se cada um tivesse um espaço onde poderia ir preenchendo com as suas memórias, ao longo da vida. Como se a nossa identidade fosse servindo de quadros, de peças ou de melodias.

As pessoas entravam e circulavam, contemplando a vida de cada um. Haveria um percurso, um guia que indicava os principais pontos de interesse.

“Aqui foi quando a Rita deu um valente tralho e ficou com uma marca na canela da perna direita. Combinou uma corrida com os amigos, em que o último a chegar ficava de fora.” – Vemos um bocado de calça de ganga toda rasgada, sangue, a corda de saltar que ia na mão e cheira a terra seca.

“Aqui foi quando subiu ao palco do São Carlos e perdeu a sapatilha a meio da coreografia. ” – Vemos as sapatilhas todas coçadas e uma sem a fita, sentimos o cheiro da resina e ouvimos um Adagio como nota de fundo.

“ Aqui estão os 56 caixotes de tralha que a Rita deitou fora na última mudança, há 2 meses. Ela quer lançar um alerta para a quantidade de lixo que vive dentro da nossa casa.” – Vemos os caixotes e o manifesto anti-tralha pendurado na parede.

Gostava de ver um Museu de pessoas, pessoas vivas. Quadros de memórias férteis em sons, cheiros e sentimentos, expressos em tonalidades diferentes – e para os daltónicos em melodias.

Todo o homem, artista ou não, vive de memórias, é a partir delas que projecta a sua vida.

As memórias são o produto da criação de cada um.

Se toda a forma de arte encontra o seu “prazo de validade” dentro de um Museu, pois é lá que sobrevive, permanece e avança e se todo o homem é fazedor de arte, então todos somos “pessoas-museu”.

Rita Saldanha – 14 de Maio de 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Vislumbres de Museus

Pedem-me para falar de museus. Mas se já passei por tantos, como falar deles? Devo falar de todos ou escolher apenas um? Falar dos museus da minha infância ou da minha idade adulta? Os portugueses ou os estrangeiros? Temáticos ou generalistas? Os que visitei ou os que quero ainda visitar? Pedem-me demasiado.
Por isso talvez fale daqueles pequenos detalhes que me ficaram na memória para sempre quando oiço a palavra museu. Como o deslumbre de menina no Museu dos Coches pela primeira vez. Afinal de contas eles existiam mesmo, não eram invenção dos contos de fadas. Infelizmente, nenhum deles se transformava em abóbora, mas, verdade seja dita, também não os vi depois da meia-noite, por isso nunca se sabe.
Ligado às minhas memórias da infância ficará para sempre o Museu do Traje. As visitas eram frequentes, talvez porque ficava perto de casa e porque os meus pais achavam que duas meninas certamente gostavam de ver roupa. E gostavam. E sonhavam em ter aquelas roupas para vestir as bonecas, copiavam para o papel os trajes e com eles vestiam bonecas de papel.
Assustadora foi a minha primeira visita à Torre de Belém. Disseram-me, já não me lembro quem, que aprisionavam pessoas lá em baixo e quando vinha a maré elas morriam afogadas. Não descansei enquanto não saí de lá e a única coisa de que me lembro é do medo de ali ficar presa também e ser levada pela maré.
Alargando os horizontes, a minha primeira visita ao Museu do Louvre ficou marcada pela desilusão. Afinal a Monalisa era pequenina e não era nada de especial. Especial mesmo era a quantidade inacreditável de japoneses e máquinas fotográficas à volta dela. Maravilhosas as salas dedicadas ao Antigo Egipto. Mais tarde, já adulta, revi essa desilusão e maravilha, desta vez com entrada fulgurante pela pirâmide, mesmo a tempo de escapar de uma violenta tempestade de Verão.
Se os museus nos surpreendem na infância, também isso sucede na idade adulta. Foi isso que me aconteceu no Museu dos Instrumentos Musicais em Bruxelas, onde descobri, num canto escondida, a oficina de construção de violinos de um personagem de um conto que tinha escrito. E não é que até tinha uma fotografia dele e tudo?
E se continuo a puxar pela minha memória certamente virão mais episódios, sentimentos, museus (eles são tantos!) e até contrariedades, como a antipatia dos funcionários da Neue Gallery em Nova Iorque por causa de uma simples garrafa de água. Mas essas memórias tristes não são para um dia como hoje, por isso fico-me por aqui.

sábado, 15 de maio de 2010

Hotel

À Susana Caldeira Cabaço, pelo seu gosto por histórias de Hotel

Marie estava sentada num dos chesterfield capitoné do bar do Hotel junto ao piano vestido de cauda preta quando a viu entrar, em direcção à recepção. Os tons verdes do mármore das paredes contrastavam vivamente com o tom tijolo do vestido que envergava, destacando-a ainda mais. A sombrinha na mão direita, de cujo pulso pendia uma bolsa debruada a vidrilhos e uma gola de vison preto compunham o retrato. Sarah continuava a não deixar ninguém indiferente à sua passagem. Não se sabia dizer se era ela ou uma uma das suas personagens que ali estava naquele preciso momento e que não deixava ninguém indiferente. Nem Marie. Marie, no seu vestido preto, singelo, sem adornos, como convém a um cientista que procura chegar à verdade alquímica. E no entanto, estas duas mulheres, tão diferentes entre si, eram feitas da mesma massa que nos une. Um corpo que anseia pelo final do dia, pelo par de braços fortes que o enleie, pelo beijo na fronte, pelas palavras que dizem a verdade mentido - que o amam e que vai tudo correr bem.


Marie Curie e Sarah Bernhardt ficaram hospedadas no Hotel Metropole, Bruxelas, em datas diferentes sendo este, por isso, um encontro ficcionado.

Pedro Diniz

terça-feira, 13 de abril de 2010

Manhã no parque

Há muito tempo que o dia não amanhecia tão frio. Tento aquecer as mãos gélidas na nuvem de bafo quente que a custo consigo exalar numa tentativa de ganhar algum fôlego e com ele desentorpecer os músculos e amaciar as articulações que recusam qualquer movimento como se pregos invisíveis as acorrentassem no castanho vermelho da cama húmida.
Cambaleante e trôpego, endireito a custo o tronco e procuro esticar as pernas ossudas que nadam dentro destas calças surradas e imundas. Este movimento lembra-me outro, não muito longe no tempo do calendário, mas tão afastado de tudo o que posso recordar como meu. Era o movimento de preparação para mais uma corrida à volta do parque. Era também o tempo em que o estômago se sentia rei.
Este pensamento acorda no coitado grunhidos de protesto pela falta do jantar de ontem e exigi-me agilidade na procura da sua satisfação.
Passo as mãos pelo cabelo num gesto vão de melhorar o meu aspecto. Sei que já foram belos estes cabelos. Ela não se cansava de dizer como eram belos e macios. Não passam agora de tiras hirsutas e ressequidas, quebradas pelo frio e pelo vento do tempo inclemente. Como foi que me volvi assim desmazelado? Como foi que esqueci? Ó ingrata, porque foi que acreditaste nele?
Olho em volta em busca de uma precária salvação. Normalmente ela vem dos caixotes do lixo. Ao afastar-me da árvore queimada pela geada da noite, dou de caras com um pacote esquecido ao lado de um caixote virado. Lá dentro estão certamente os restos da minha salvação, agita-se o meu pensar. Porém, que esquisito isto: pego no saco e sinto-me invadir por um mal-estar e uma vontade insistente de o abandonar. Estás parvo, ou quê, grita o estômago num refilar atrevido. Abre esse saco já e vê o que tem dentro! Ah, que bela maçã, baba-se ele suavizando o seu roncar. Trinca-a já. É uma ordem seca e autoritária que não me deixa espaço para subterfúgios ou fugas. Ainda para mais ela parece endereçar-me um convite disfarçado num brilho vermelho e apetitoso que me enfeitiça. Decido-me.
Fecho os olhos e, numa volúpia de sensações e sabores, cedo os meus dentes à penetração daquela macieza sumarenta e perfumada. Mas oh, que calor pastoso invade agora a minha boca e que dor lancinante me perfura e dilacera! Num arremesso instintivo livro-me do fruto maldito. Três pingas rubras mancham a alvura da geada que me gela os pés. Pressinto na ferrugem baça que me escorre da boca juntamente com um sabor adocicado familiar, ter sido vítima da minha, embora maltratada, beleza e juventude. Não muito distante parece-me ouvir em estridência uma gargalhada vitoriosa e um ser melífluo perpassa os arbustos vizinhos aliviado do peso do seu ódio secular.

A partir de um texto de uma das aulas de escrita

Irene Crespo

Se eu quisesse enlouquecia...

Seria extremamente fácil e talvez me fosse útil. Conseguiria chamar a atenção de alguns e afastar outros. Chegaria aquele ponto, ao ponto de ruptura.
Deixaria-me cair e levar-me pela loucura – ficava junto a ela. Era ela que tomava conta da minha vida – não eu, ela - a loucura.

Posso vê-la como uma mulher, suave e de olhar turvo, deitada numa chaise-longue a fumar cigarros com boquilha. De unhas vermelhas, perfeitamente pintadas e longas e mãos que lhe seguem os braços de cisne negro.

Tem uma pele de efeito mate, cheira a pó de arroz e tem o cabelo escondido num turbante. Sim, porque ela estava quase sempre de turbante. E fumava deitada. A loucura.

Dizem que há genes que se herdam com a loucura – como se fosse uma característica do corpo. Como uma marca. Talvez todos tenhamos a loucura cá dentro, uns a espreitam outras a ignoram.

Eu já a vi. Várias vezes. Ela jogava bridge com perícia, era linda e sempre inteligente. Casou-se até e teve 4 filhos. Não os conseguiu criar, claro que não. (Era louca)
Todos a conheciam, a ajudavam na sua loucura. Até eu que me vi várias vezes no quarto dela, a usar o batôn dela, a pôr os chapéus dela e o perfume dela.
Era fácil para mim enlouquecer. Era bom. Esquecia-me de mim e era ela, que como um fantasma paira e assombra os dias.

A loucura morreu há muitos anos, mas pelo menos, daquela casa e da filha que dela nasceu ela parece nunca ter desaparecido.
Se eu quisesse eu voltava lá, respirava o ar dela e enlouquecia.
Tenho tudo o que preciso, então.

Rita Saldanha, 25 de Novembro 2009 – Curso escrita criativa II

Nota: a minha Avó faria anos agora em Abril...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Kornélia

Já te disse que és perfeito?
Gosto da tua maciez. Nem os homens me prendem assim. Basta-me um agora outro depois para me saciar o pouco que não me podes dar. Depois, deixo-os ir quando acaba a curiosidade. Perfeito só tu e o teu viver silencioso. As conversas cansam-me. Irritam-me até. Exaspero ouvir falar de vidas cor de rosa e outras coisas que não existem. Gosto da intimidade destes nossos serões. Não pedimos nada um ao outro e damos muito pouco para a felicidade que alcançamos juntos. Eu faço-te festas e tu ronronas. Pragmáticos. Quanto eu a minha máquina fotográfica.
Em fracções de segundo, momentos roubados, esgares captados. Não hesito. Ao contrário do que pensam na redacção quando entrego as fotos - “Tens cá uma vaca, és tu e a Kornélia!”, odeio que me chamem isto, sabes - não é sorte. E é mais que o saber. É muito mais que escolher temas, a luz certa ou emoções no momento exacto do disparo. Sou eu. Aquele acto mecânico requisita o meu passado, tudo o que guardei para mim, os filmes que vi, os quadros que admirei. É por isso que não faço composições fotográficas. Apenas a cena. Seca como eu. Gosto de fotografar as pessoas como verdadeiramente são. Vidas simples. Dramas tramados. Sinto que estamos ligados por uma irmandade imposta que formata existências e sentimentos. Realidades a preto e branco. Atraem-me velhos de barba por fazer com sorrisos desdentados. Mulheres desmazeladas com filhos ranhosos pela mão. Desenraizados. Desconcertados. Acho que os compreendo, que são como eu. Assim que a vida nos permite, fugimos uns dos outros. Do que somos. Espécies sem cordão umbilical. Nem para nascer nem para viver. Trabalhamos para quem nos pagar. Qualquer um serve. Não queremos vínculos. Eu, nem o familiar sou capaz de manter. Um telefonema basta para cumprir a obrigação de filha. 10 minutos e não penso mais neles até ao próximo mês. Às vezes passam dois. Tenho a certeza que eles também não pensam em mim. Agora que estou longe percebo que já não nos importávamos quando nos separámos. Pergunto-me se tivesse tido irmãos se seria diferente. Talvez não vivesse tão sozinha. Assim, sou apenas um acidente de percurso. É por isso que a passagem dos dias não me traz saudades. Só alívio. Eu sei, gato. Engano-me com a verdade dos outros. Eu, nem como eles sou. O meu existir é oportunista, cola-se à imagem dos outros porque o meu envergonha-me. Sou indiferente e vazia. Ninguém me quer e eu não quero ninguém. Aprendi a não ter sentimentos. Agora já não me comovo com criancinhas raptadas e idosos mal tratados. Chego a ter pena de mim. Preciso da desgraça dos outros para me sentir melhor. Ainda assim, todos eles piores que eu, superam-me. Emanam uma luz que não encontro em mim. Sou baça, opaca, escura. Chego a ter medo. Chego a pensar que sou capaz de os matar por mero despeito. Imagino a máquina como uma arma e disparo furiosamente contra eles na esperança que a sua luz entre em mim e me faça acreditar que não sou louca. Que não sou diferente. Que não tenho defeito. A solidão é um preço muito alto que pagamos pela independência. E ninguém, em nenhum momento, devia estar só. É demasiado perigoso para o pensamento. Ainda assim, surpreendo-me com a minha máscara. Consigo ser popular. Os meus amigos até me acham divertida. Puras manobras de diversão. Não percebem que os observo. Que os fotografo para os estudar. Há dias que consigo aproximar-me da normalidade deles sendo simplesmente uma caixa de ressonância. Mas ao fim de algum tempo a tarefa pesa-me. A resistência que tenho a tudo o que me poderá tornar humana acaba por preencher todo o meu vazio. Tenho medo que seja bom. E o que é bom, acaba um dia. É quando os humanos sofrem. Gato? Estás a ouvir-me? Já nem tu me ouves......
Ana Alves Oliveira

sábado, 27 de março de 2010

ele estava ali

ele estava ali há algum tempo.
aproximou-se devagar. não olhou para ela. não olhou para ninguém. apenas apoiou o cotovelo no balcão do bar. ela gostou. a postura era de homem, um homem a sério.
ele continuava sem olhar para ela. a sua mão segurava uma nota, a sua voz segurava um pedido:
vodka martini, agitado e não mexido.
o barman serviu-o. duas mulheres aproximaram-se. uma apoiou os dedos longos no ombro dele. mão sobre smoking. a outra pôs-se cara a cara com ele. nariz com nariz. lábios. e o copo dele, afastou-a, bebeu e sacudiu a mão da outra.
deu passos, deixou-as para trás, com desconcerto na cara.

agora olhava para ela. copo na mão. avançava para ela. e ela não o conhecia, mas ele segredou-lhe ao ouvido. e ela não o conhecia mas assentiu desarmada. ambos abandonaram o bar e o copo.

no quarto ela chamava por ele, clamava aleluias, deus do céu!
e ele via-se reflectido nos enormes vidros da varanda, no espelho escuro que existia depois da porta da casa de banho. ele via-se animal. um animal sexual vazio sobre uma louca em queda no amor. ele não sentia. ela sentia tudo. ele não sentia porque o corpo é uma máquina de estímulos, a sua cabeça: lenha sem chama.
a chama consome até à cinza.
mortos, somos cinza.

no dia seguinte ela estava na cama. ele não. os polícias olhavam para ela. para o seu corpo.
um pegou-lhe no pulso, disse: os mortos cheiram a cinzas.


Francisco Ribeiro Rosa

Provocações do Arco da Velha

Com tantas andanças debaixo do arco-da-velha, o manel esqueceu o mais importante: o lançamento de um livro misterioso no palácio do Conde de Abranhos. Quando se deu conta, ao soar das sete badaladas no sino da torre da velha igreja de S.Teotónio, desalvorou Lisboa fora, ciente de encontrar neste recôndito lugar, a Rita, protectora de personagens, como anunciado por um anjo negro na nave da igreja de S.Lázaro em dia de penitência.

Chegou esbaforido, sem folgo para atacar a malvada protectora, escondida entre hostes protegidas por um raio de luz que incidia directamente sobre a escada que conduzia a lado nenhum, provocando calafrios de impotência pelo ar sonegado por aquela que por certo jazia entre muitos naquela plateia pejada de seres chamados “assistência”

Onde está ela? Pensava ele, o usador de personagens, a devorar com os olhos manchas de espectadores em busca deste guardião de abilios enforcados nas suas vidas, rotineiras e diárias, a aguardar o grito de ipiranga libertador. O Manel bem que os ouvia: “ salva-me manel, a minha vida é igual à do meu vizinho. Preciso do vinho tinto que me dás, preciso da tua autoria para me libertar deste fado atroz que me faz ser porco, com direitos de porco, quanto eu quero ser cavalo para lidar toiros no campo pequeno. Não faz mal que não saibas escrever, a gente está habituada a viver com erros”.

Por artes mágicas, a rita sumiu no meio daquela leva, enrolada num sobretudo mágico para enfrentar os 4º da CREL como anunciado por D. Vargas, protector dos friorentos, naquele noite também marcada por nepalezes, conquistadores de entranhas, pouco amigo do ambiente, feitos com uma tal Renova.

Atenção personagens, cuidado com os bolos de arroz que uma tal rita anda para ai a dar. Aquilo é bom, tem crosta crocante, mas lembrem-se dos efeitos especiais provocados pelo vinho do manel. Lembrem-se das fidalgas com os quartos traseiros empinados em frente ao altar-mor, lembrem-se que ainda um dia vão poder descobrir a vida secreta de uma tal Viúva Teles, do secXVIII, que ainda anda por aí a perguntar pelo padre Francisco, o tal dos ciganos, das concertinas e das confissões junto às pipas de palheto, por ser vinho brando, do agrado do senhor.

Manuel Alonso,

 

em resposta à Rita, protectora de personagens, do arco da velha.

 

quarta-feira, 24 de março de 2010

23:10h

Aproximava-se a hora.
António regressava do parque de estacionamento. Eram oito da noite. Para trás deixava a cabina onde trabalhava. De passo largo, satisfeito, caminhava até casa. Quem olhasse para ele não adivinharia um homem sem sonhos. Mesmo depois de viver em paz.

Ainda era difícil chegar a casa. Abrir a porta e, a esperá-lo, a angústia do passado na expressão desolhada e o corpo rígido da mãe. “Estou cansada. Não durmo bem”, mascarava. Serenava apenas quando olhava o jantar quente em cima da mesa. Eram só os dois.

António vivia de rotinas. A repetição da vida numa segura monotonia que afiançadamente não lhe trazia surpresas nem traições. António era um homem cerrado. Só usava camisolas pretas. As únicas que o ocultavam até de si e, oculto, vivia o escuro da noite que à janela do seu quarto o distraía sem culpas. Desde os tempos de escola que lhe reclamavam a atenção. Foi naquela altura que a cabeça aprendeu a fugir. Assim, a vida não parecia tão difícil.

Agora, gostava que fosse possível aprender tudo de novo. Sonhar. Confiar. Mas os ânimos mais atrevidos eram condenados pela lembrança que o combóio das 23.10h trazia. A partida do pai. A nova vida. O alívio. A paz. Desejos tão impossíveis e subitamente todos realizados. Depois destes, não aspirava a mais nenhum.

Ao longe, o seu conhecido.
Sorria ao som do seu apito.

Da felicidade apenas guardava pequenos ecos dispersos na memória. Lembrava-se de ter sido uma criança feliz. Passeios de mãos dadas. Ele pequeno a olhar o pai enorme como os sonhos e o mundo de que lhe falava. Um conquistador que queria seguir. Recordava as tardes na casa grande com muitos quartos e cheia de senhoras só de robe. Apesar de estranhar vê-las com roupa de noite em pleno dia, tudo parecia normal quando o apaparicavam e contavam histórias de encantar. Até ao dia em que percebeu que aquelas histórias não encantavam a mãe. E aos poucos deixaram de ser felizes.
Com a barba veio a revelação.
A crueldade dos colegas de escola acabou-lhe com o mito. Às gargalhadas.

Não sabia o que fazer com o que tinha descoberto. Como é que se vive depois de saber que o pai nunca tinha sido aquele pai? Como é que se pode aceitar um novo pai? Não. Não havia novo nem velho pai. Havia só aquele desconhecido que ele odiava duplamente. Por tudo o que era e por tudo o que ele nunca tinha sido.

E ele, quem era? Ser filho de um desconhecido fazia dele um órfão. Era isso que ele era. A sua identidade extinguiu-se naquela verdade. Uma verdade que não consentia e que tinha que aceitar. Só tinha aquela vida. “Não vales nada. És igual a ela”, humilhava. À mãe, a repulsa apenas lhe valia ameaças que lhe abriam a porta da rua. Mas o rapaz fica, rematava. Sem ti, talvez se faça homem. Foi então que se vestiu de pesar. Pelo medo que o escravizava mudo e quedo.
Até ao dia que se achou. E nesse dia foi capaz de acabar com o asco que o corrompia. Uma noite foi ao seu encontro. Tinha os punhos cerrados, tão cerrados que lhe doíam. Receava perder toda a coragem que reunira. A veste mais escura que a noite, apanhou o pai de surpresa. Olhou-o nos olhos e, sem remorsos, desembuchou anos de nojo. Desaparece, ou mato-te!, foram as últimas palavras que lhe disse.

Nessa noite, voltou à janela do quarto de peito aliviado. O pai tinha razão. Ele e a mãe eram iguais. Aquela noite provou-lhe que os mortais também ressuscitam. Plenos. O desconhecido não voltou para casa e as noites ganharam cheiro a lavado. Foi nesta altura que deixou de desejar. Tudo o que queria, alcançara. À mãe agradecia nunca ter desistido. Por isso, também ele não fraquejara.

Ao fundo, o apito do comboio das 23.10h. A constância a cumprir-se num cumprimento de amigos.

Conciliado, agradecia-lhe a ajuda. A sua luz, como que uma anunciação divina, mostrou-lhe o fazer. “Combóio faz mais uma vítima”, diziam os jornais do dia seguinte. Os braços endureciam. Ainda recordavam a força com que o empurrara. Impávido, ainda via o seu desaparecer trucidado. Impiedoso com as horas.

Ana Alves Oliveira

Nas asas do vento

Ontem quase fui pássaro. No dia do equinócio.
Voei nas asas do vento.
Quieto, ele não queria. Estava talvez aborrecido com a igualdade do dia e da noite. Porque preferências todos nós temos. E vá-se lá saber que preferências o vento tem.
Sabe-se que dormiu até tarde talvez para não se misturar com a neblina opaca e parada, que só o sol viria a dissipar na secura do seu calor atrevido.
E foi então que o arredio vento, distraindo-se, saiu para namorar as ondas.
E eu voei. Como um pássaro. E rasei a falésia. E lá em baixo um manto verde de esmeraldas ali deixadas esquecidas gorgulejava a espuma branca com que retribuia o beijo ao vento na areia molhada.
Era o meu primeiro voo. Com uma asa que não era a minha. Nem do vento. Uma asa que se desenhava curvilínea na imensidão azul e que me salvava da gravidade com linhas quase invisíveis.
O ar foi momentaneamente meu. O azul perdeu os limites e um lago imenso ofereceu-se malévolo e cândido. Ocupou-me por inteiro a emoção da vez primeira, plena de borboletas virgens.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O Poço

Maria não gostava de tirar água do poço. Nunca vinha limpa.
As impurezas acumuladas no fundo turvavam-lhe o esforço de acreditar na pureza do beijo.
Como a água do poço, o beijo era frio.
Também ele turvo, sem que no entanto lhe conhecesse a razão da sua incerteza, escorria-lhe pela face sem que tivesse tempo de o sentir.
Seria o beijo limpo, puro e verdadeiro se não viesse do fundo do poço?
Não sabia.
Mas sabia que nunca iria saber a que sabe a água de um beijo que vem de cima, da água mais limpa, mas cristalina. Daquela água que se reflecte em nós e nos inunda de luz e certeza.
Maria não gostava de tirar água do poço.
A água do beijo vinha sempre do fundo. E no fundo do poço o beijo era seco.

Ana Alves Oliveira

O Bolo de Aniversário

(a pedido da Rita Saldanha)

Olhou o bolo de aniversário carregado de velas, tantas quantos os anos que lhe passaram pelo corpo. Parecia que toda a superfície do bolo estava em chamas, aquela luz cortante a ferir-lhe os olhos, os gritos cantados a cortar-lhe os ouvidos.
Agora pede um desejo, avô, gritavam os miúdos todos os anos após a estridente e descontrolada cantoria que durava tempo demais tal como ele.
E todos os anos ele olhava aquele aglomerado de chamas pequeninas apertando-se umas contra as outras. Parecia que aquele bolo não acabava mais, ano após ano mais uma se lhes juntava e o bolo esticava, esticava. Até um dia, pensava, que rebente de vez.
O desejo, avô, insistiam.
O desejo era sempre o mesmo, desde os tempos em que naquele bolo apenas eram espetadas, à pressa, meia dúzia de velas tristes, já usadas de outros anos até se dissolverem na cobertura rala de chocolate.
Desde então o desejo era sempre o mesmo, apesar da saber que nunca se iria realizar. Mas desejava-o sempre, a mesma intensidade, a mesma força, ano após ano, vela após vela, até que o bolo se apague de vez.
Como fazer o tempo voltar atrás, interrogava-se. Era só isso que desejava, fazer o tempo voltar atrás para aquele dia em que tudo mudara. Como voltar atrás e ficar em vez de o deixar sozinho, tão pequenino que era?
Apagou as velas com o esforço da lembrança do irmão mais novo, ainda bebé, sozinho no chão, junto ao berço, corpinho sem vida, enquanto ele, alegre e esquecido, trepava alto a figueira do quintal até onde os seus sonhos iam, sem responsabilidades ou obrigações.
Apagou as velas como sempre, desde então, com as lágrimas do arrependimento.
Susana Caldeira Cabaço

Muito me tarda a Primavera

Tarda-me a Primavera nos meus olhos aguados de vento.
Tarda-me o sol nas pregas engelhadas da manta rota da alma.
Tarda-me o riso dos pardais nos braços desamparados.
Tardam-me os dias quentes, soltos, saídos de dentro deste tempo esquecido do tempo.
Tarda-me a exultação de outro vir, de outra vez ser.
Tudo em mim grita uma urgência de sentir a vida a pular do âmago da vida.
Seguro os olhos nas árvores do parque que tentam em vão velar a sua nudez envergonhada com ténues tules de uma cor ainda sem cor.
Os meus olhos teimam mergulhar nos segredos que fermentam o novo renascer. Detêm-se e observam no limite próximo da orla do parque, uma fileira de de galhos juvenis semeados de pontos brancos, pequeninos miosótis, pendurados, aconchegados num incipiente leito de vermelho ocre a preceder a promessa de uma folhagem quente e atrevida. A primeira a querer quebrar o longo letargo frio em que tudo, mas tudo, se retrai, encolhe, implode para existir na mera potencialidade do que há-de vir.
Segreda-me a razão que o ciclo se há-de cumprir. E cumprir-se-á. Com tempo. Segundos transformados em minutos, em horas, dias, semanas talvez.
Digo-me que já devia dominar a paciência da semente e ocorre-me que toda uma vida humana se pode resumir ao ciclo de um ano de vida de uma árvore.
Faço o exercício e sumario uma vida a esse tempo único:
Febril o primeiro trimestre a brotar das gretas da terra, a deixar-se engavinhar, a crescer, a soltar-se, a subir, subir, subir...a segurar o mundo na mão, a proclamar e a olhar com sobranceria inocente o mundo.
Ávido o segundo trimestre a engalanar-se de cores berrantes, a ufanar nos raios doirados da glória, a engravidar o conhecimento, a dar vida, a fazer-se criador. A dominar e a ser dominado, a vencer ou a ficar para sempre vencido.
Prenhe o terceiro trimestre a colher o que mesmo sem saber semeou. A observar, a escutar, a entender e a aceitar. A curar as feridas e a ir para lá das dores. (ou não...)
Plano o quarto trimestre: primeira hipótese, a ficar imbecil; segunda hipótese a tocar os limiares da sabedoria porque adivinha a eternidade das coisas.
E é na antecipação do eterno repetido que o mito primavera me persegue. Ou não fosse ela a primeira. Ou não fosse quem a precede conter em si a promessa inexorável da germinação.
Ou será um medo insidioso de que o ciclo natural se subverta e com ele a desesperança da minha reinvenção?


Irene Crespo

Arco da Velha

No dia 16 de Dezembro de 2009, Manuel Alonso, "el usurpador de personagens alheias", lança o seu conto nas Bicicletas 5, num Encontro no Palácio de Abranhos em Lisboa.

Eu não consegui ir e o Manel faz-me, por email, a seguinte provocação:
"Rita, espero que tenhas uma desculpa do arco da velha para a tua ausência de ontem."

À qual eu respondi, da seguinte forma:


Havia uma velha que morava numa casinha debaixo de um arco.... toda a gente a conhecia aquele lugar como o Arco da Velha.

A Dona Mimi, de 93 anos, sempre viveu ali debaixo de um arco.

Certo dia o Manel, mais conhecido como o usurpador de personagens, passou debaixo do arco num carro a alta velocidade - andava louco para “fanar” esta querida e redondinha Dona Mimi. Ele queria a velha que tinha dado o nome ao arco. Tinha de ser uma personagem sua, tinha!

A Dona Mimi, já avisada pela Rita, mais conhecida como a protectora das personagens filadas pelo usurpador do Manel, ligou-lhe a pedir ajuda.

Rita acorreu ao pedido e juntas combinaram na 4ªfeira, dia 16 de Dezembro, dia em que o usurpador estaria a apresentar o seu novo conto com personagens “fanadas”, fazer as mudanças da Dona Mimi e tirá-la da casa debaixo do arco.

Escolheram uma residência sénior do Grupo Mello, muito bonita, de frente para o mar, na marginal.

A Dona Mimi está feliz.

O Manel dizem que anda há dois dias a rondar a casa do arco que agora está vazia... mora lá um gato preto.

Agora é o Arco do Gato.

Atenção, velhos, novos, crianças e jovens, o Manel anda à procura de uma próxima vítima...

sábado, 20 de março de 2010

O meu 1º exercício de escrita criativa.

A história de um copo

Vivíamos todos na mesma praia. As ondas sempre nos acompanharam. Até que um dia cavou-se um sulco na terra e fomos afundados. Julguei que tinha morrido. Das fusões e combustões, entranhei-me com outros desconhecidos. Passamos pela fornalha. Achava que deviam estar loucos! Daí a virar uma espécie de pasta foi um instante.
E depois de alguns dias, fiquei colado a outro e a mais outro.

Aqui estou eu. Sou um copo. Sou vidro. O meu primo, soube na semana passada, é um caleidoscópio. Que sorte! Também gostava. A minha vontade de voltar ao mar é muita. Sinto-me meio inchado. Estranho.
No outro dia disseram-me que nos partimos e nos desfazemos em cacos. Depois lixo ou reciclagem. Aqui me vou ficando. O que mais gosto é da água. Sinto-me como se tivesse voltado à praia… Por aqui é mais isso, e também algum vinho.

Rita Saldanha
Outubro 2006

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quand je cache mes yeux.

(Abra uma revista e veja uma fotografia de alguém que não conhece. Procure escrever uma página de monólogo dessa pessoa) Fevereiro 2008

Quand je cache mes yeux, je te vois t'inscrire dans le fond de mon regard. Tu flottes en surimpression sur le halo de brumes roses et grises qui se lèvent un beau matin d'été.

Quand je cache mes yeux, ton sourire timide vient danser sur les couleurs qui t'entourent.

Quand je cache mes yeux, j'entends les sons et les murmures de ta voix, qui me transpercent, comme si, soudain, il n'y avait plus qu'eux.

Quand je cache mes yeux, je reçois l'éclair de cette lueur inquiète qui se dissimule dans ton regard.

Ne sois pas triste, non, ne sois pas triste. Ton intuition est juste. Mais tu sais que le destin doit s'accomplir et que nous n'y pouvons rien.

L'été de mes neuf ans, avant de partir à l'école militaire, il y aura ce beau dimanche d'été où je pourrai aller à la plage avec vous.

Après nous être baignés et avoir couru comme des fous en jouant au ballon avec ta petite soeur, l'heure viendra de nous enfoncer dans la grande pinède pour y déjeuner. Puis, ton père et ta mère somnoleront et ta soeur s'endormira profondément près de nous, enroulée dans son drap de bain. Avec la plus grande prudence, nous nous relèverons et nous chuchoterons. Nous serons l'un en face de l'autre, appuyés chacun sur un coude. Je te raconterai mes premières années passées en pension.

Tout en répondant aux questions de l'insatiable curiosité de tes six ans, je jouerai avec des poignées de sable, et plaçant ma main au-dessus de ton avant-bras dénudé, je laisserai s'écouler lentement sur ta peau, les grains qui glisseront et iront s'amasser en petit tas sur la rabane. Cette caresse éveillera en toi, en même temps que des émotions inconnues qui marqueront ta mémoire au fer rouge, une angoisse que tu ne sauras expliquer.

Quand je cache mes yeux, je vois quelque chose qui m'effraie et qui donne raison à ton regard inquiet.

Quand je cache mes yeux, je sais qu'après ce jour, nous ne nous reverrons jamais.

Quand je cache mes yeux, apparaît, dans le ciel bleu, un grand oiseau argenté qui le traverse, en filant plus vite que le son. Je suis pilote d'essai sur un mirage et je suis à ses commandes.

Quand je cache mes yeux, il y a ce jour, un jour comme tant d'autres, où, au cours d'une manoeuvre, le bel avion de chasse se désintègrera dans un bruit de tonnerre, et se dispersera comme un bouquet final au-dessus de la terre.

Quand je cache mes yeux, je vois distinctement l'image qu'éveillera alors, en toi, le souvenir de moi.

Tu sauras, ma cousine, que le sable pleurait.

incisões

a cauterização é uma dor feita de luz.

a ferida que se queima, fecha. é uma ferida que existe sem existir. somos carne. matéria. a matéria queima. a matéria pode ser só cinzas.
o espírito está para lá da matéria. dizem que subsiste mesmo depois das cinzas.

há feridas que subsistem mesmo depois de queimadas.

...

uma cicatriz é o estranho.

a carne é o mundo acordado. o espírito, o mundo a dormir. se uma ferida que sara na carne atormenta o espírito, é composta por insónia.
insónia é querer dormir. e não conseguir.

ferida é insónia.



Francisco Ribeiro Rosa

quinta-feira, 18 de março de 2010

Violeta

Tirou o fato do armário, impecavelmente passado. Da cómoda, a camisa dobrada. Escolheu a gravata. Escura, talvez fosse o mais apropriado.
Depois, foi até ao corredor. Tirou o quadro dos lilazes da parede e pousou-os no chão.

Três zero zero três.

Fora ao terceiro dia do terceiro mês que a conhecera. Passara por ele, alta, esbelta. Nem o olhou. Foi o suficiente para o coração dele sucumbir à sua beleza.
Abriu o cofre. De dentro da caixa em veludo azul escuro, poído pelo tempo, tirou os botões de punho. Um par de flores concêntricas de brilhantes de primeira água que havia adornado os lóbulos imaculados de sua bisavó no dia do seu baile de debute. Fora em Sevilha, onde havia séculos a família paterna instituíra como cabeça de morgado a magnífica villa com o seu refrigerado páteo andaluz. A ebúrnea mantilha não realçava o nacarado de qualquer conjunto de pérolas.
Levou-os para o quarto, depois de colocar os lilazes na parede verde.
Na cómoda onde os pousou, um envelope com um único nome. Violeta. Levou o revólver ao peito e matou o coração. Nesse instante, em que golfadas de carmim espirravam a colcha alva, começou a viver.


Pedro Diniz
18/03/2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Fronteiras

Uma carrinha de caixa aberta aproximava-se.
“Vem enganado como todos os outros.” pensou a mulher.
Mas com este foi um pouco diferente.
Com o cotovelo pousado na janela aberta, o homem, trintão, bigode aparado e ar rufia mas simpático, fitava-a. Depois, sorridente, cumprimentou-a:
- Ei giraça...
Agradada, respondeu:
- Bom dia.
Mas o sorriso dela desvaneceu-se ao ver, naquele instante, uma arma apontada a si.
Ele, sem deixar de sorrir, apenas disse:
- Passa para cá a massa.
Juntou o dinheiro pensativa. “Nunca ninguém me chamou giraça”.
- Só isto? Perguntou ele, descontente com a quantia recebida.
Ela encolheu os ombros.
- Mas posso levá-lo para longe daqui.
Foi a primeira e a última recordação. A seguir, fechou os olhos.

Uma portagem estabelece sempre uma fronteira. A maior parte dos que a atravessam passam por ela quase sem dar conta, viajantes puros. Alguns, poucos, detêm-se. Talvez estejam perdidos.

O rádio tocava baixo. Sentada, quieta, com o olhar perdido na estrada, Maria esperava. Apesar de contrariada, tinha que haver sempre alguém a tomar conta. A motoreta que se aproximava anunciava que chegara o momento em que alguém tinha que a render. Só os grilos cantavam na noite silenciosa. Maria levantou a bicicleta meia escondida pela vegetação e afastou-se pedalando lentamente. Contrariada, deu uma última mirada ao colega que, de costas para ela, se instalava no seu posto.

No início também não tinha sido fácil para ela. Custava-lhe que quase ninguém passasse por ali. Agora já não se importava. Até preferia assim. Adaptou o seu mundo aos campos que se estendiam em volta da sua cabina, numa calma só perturbada pelo voo dos pássaros e aos vários livros e revistas que lia. No que lia, o mundo dos outros parecia maravilhoso. Muito diferente do que chegava até ela. Mas com o tempo, convenceu-se que o melhor era deixar de perseguir o mundo dos outros e aceitar ser simplesmente feliz. Dos livros guardou só um. Na verdade pouco ou nada precisava dos outros. Abandonou a inquietação que estes lhe traziam e concentrou-se no seu posto. Nunca se desleixava. Sabia perfeitamente quando um carro se aproximava. Estava sempre pronta para os receber. A maior parte dos que apareciam viam-se que estavam perdidos e se calhavam falar com ela, não resistia. Começou a convidá-los para longe dali. Desapareciam por entre a vegetação e os barulhos tranquilos da natureza.
Depois, eles partiam e ela ficava a vê-los afastarem-se. Olhando a estrada como se esperasse que esta lhe trouxesse alguma coisa especial. Sabia que mais qualquer coisa lhe estava ainda prometida.

Com este último foi diferente. Nunca lhe tinham chamado giraça.
Parecia vir enganado como os outros. Depois, apontou-lhe uma arma e nunca mais foram os mesmos. Ela começou por levá-lo para longe dali. Mas ele não ficou. Contudo, foi o único que voltou. Trazia quase sempre presentes. Ela sabia que eram roubados, mas acabava rendida. Com ele, não precisava de mais ninguém. Ele velava o seu mundo enquanto ela dormia e assim era finalmente senhora de tudo. Maria deixou de levar os viajantes para longe dali e Mário não voltou a roubar mais nada depois de lhe ter roubado o coração.

Um dia vieram buscá-lo. Ele não estava, levaram-na a ela. Que também tinha culpa, calara a verdade, acusaram. Eu não sabia... ele disse que queria assentar...” balbuciou. Não lhe valeu de nada. Foi condenada e encarcerada. Aos poucos foi acabando. Descobriu uma verdade que agravou aquela que tinha aceitado. Por uns tempos vivera a ilusão da completude mas Mário era uma metade de um todo que não resistiu ao mundo dos outros. A um mundo que não deixou de chamar por ele. E Maria não tinha sido cruel o suficiente para o impedir de partir.
A ela não lhe servia uma felicidadezinha ajustada. Sabia que estava para sempre condenada a ser metade de um todo impossível. Por isso, não se conformou. E acabou com tudo.

“Deixei que quebrasse as fronteiras do meu mundo. Levaste-me para longe dele. Deixei soprar a paixão. Os pregos de véu que protegia a minha intimidade caíram como figos verdes da figueira sacudida por um vento forte. E fiquei exposta. A um mundo novo. Nosso, acreditei. Percebo agora que não. Ao teu, não quero estar presa. Perdi o caminho de volta. Este é o único que me resta.”

A cabina onde vivera era diferente daquela onde morrera. A primeira tinha um rádio, a segunda uma cama e crucifixo.
Três mulheres fardadas olhavam o corpo. Tão surpresas quanto a morte nos pode ser. Com os pulsos toscamente cortados, Maria repousava sobre o crucifixo. A quem tinha pedido todas as noites que a levasse para longe dali. As preces foram finalmente ouvidas e atravessou a fronteira que a delimitava como um viajante puro. Vulnerável. Perdida.
Em cima da cama, arrumada, deixou uma carta. Para Mário, dizia.
No rosto, a expressão serena de quem alcança a libertação.

Ana Alves Oliveira

sábado, 13 de março de 2010

Exercício de escrita criativa.

1 – Descrever alguém à procura de alguma coisa, concreta e essencial.

 

O sobretudo parecia uma mina de bolsos, o casaco de dentro também. Em cada bolso escondia-se uma surpresa, um novo objecto perdido para uma altura que não era esta. O nervosismo do homem, em busca do que procurava, contrastava com o rosto suave, o corpo magro, quase descontraído não fossem as mãos a saltar de bolso em bolso, à procura do objecto do seu interesse, da falta que lhe acontecia neste momento, daquilo que lhe travara o caminho do que se queria imediato.

 

Uns quantos encolheres de ombros, um olhar de fuzil ao espaço adjacente, como se algum dos bolsos pudesse ter saltado para a calçada e fosse urgente não o deixar fugir. Enquanto isso, apesar da espera, a Mulher olhava resignada; conhecia o final da história: havia sempre mais um bolso para procurar, mais uns resmungos para ouvir, as chaves acabariam por tilintar. A cena seria esquecida noutras cenas que se seguiriam logo após a necessidade de encontrar um novo tesouro, escondido naquele mar de bolsos.

 

2 – Encontrar um obstáculo que impede o encontro com a coisa concreta e essencial.

 

Um esgar, como o de uma dor que obrigava a franzir o rosto num trejeito que demonstrava desespero, estampou-se no rosto do homem. Um dos bolsos estava roto, traíra a sua confiança, colocava uma dúvida naquilo que era rotina. Procurava ainda, volta a certificar-se que o bolso de dentro, o destinado à carteira, não tinha chaves. Batia com as mãos ao longo do corpo, como sempre fazia, na esperança de que as malditas chaves gritassem de dor. Os ombros ossudos caíram, as pernas longas e desajeitadas deixaram de se bambolear ao ritmo da procura; nos olhos azuis, quase doces, de uma inocência assombrada, perpassava uma sombra, as narinas dilataram-se em busca de um suplemento de ar para fazer face ao imprevisto: um bolso roto, um dos que poderiam ser decisivos na resolução da coisa. Ainda mirou o forro, introduziu um dos dedos no buraco exposto, ficou a olhar por instantes, incrédulo desta súbita desavença com um dos bolsos. Estacou, deu-se ar de quem pensava.

 

3 – Interpretação interior.

 

Revirou os olhos em direcção à testa, como quem pede ajuda à memória. Pensou, repensou, bateu com os tacões na calçada, procurava um norte, um procedimento que desfizesse esta armadilha em que caíra. Olhou para a Mulher, ensaiou um olhar acusador, desistiu quando esta suspirou resignada, teve a certeza imediata de que dali não espiava o mal e que a culpa do bolso roto regressava a si ainda antes de terminar a primeira recriminação. Pensou pôr os bolsos de parte, concentrou-se num possível inimigo: alguém. Alguma coisa do seu mundo tinha tramado o destino das suas chaves. A duvida provocada pelo buraco incendiava o momento, tornando diferente, alargando os horizontes dos possíveis destinos do que procurava.

 

Recriminou-se, julgou chagada a hora de se emendar, o seu coração endureceu.

 

4 – A vida depende da resolução.

 

A Mulher trouxe-o à realidade, perguntou-lhe por “agora”, pelo que iriam fazer com a sua vida se as malditas chaves não aparecessem, como iriam entrar dentro do carro, fugir dali, daquela confusão, daquele maldito problema em que se tinham metido. O saco do dinheiro avisava da urgência de colocar distância entre o banco assaltado no quarteirão anterior e o automóvel imobilizado. O plano tinha sido estudado sem ter em conta os malditos bolsos, as chaves que se poderiam perder e comprometer o seu futuro, a sua vida de pessoas livres apesar do dinheiro roubado.

 

As sirenes ouviam-se. A polícia estava a chegar, os cinco minutos de trégua tinham-se escoado nos bolsos do homem.

 

5 – A personagem triunfa sobre o obstáculo.

 

O terror invadiu as suas vidas, o homem não tirava os olhos da mulher, rendia-se à evidência, à face prática desta que sempre tirara de apuros as suas vidas. A Mulher ajeitou o casaco, compôs o volume que escondia, passou a mão pelo cabelo, olhou em volta, dissimulada, tentando encontrar um qualquer passe mágico antes que desatassem a correr, espavoridos, completamente derrotados por uma chave, a chave que lhes configurava a vida, talvez a morte.

 

Censurou a sua fé, fez votos, rogou pragas que não se ouviam, daquelas que só as mulheres ousam em vista de uma contrariedade séria, dramática como aquela. Encomendou-se à Virgem, prometeu dez por cento para a caixa das esmolas, arrependeu-se da heresia; olhou para dentro do automóvel e viu as chaves penduradas da ignição. Soube de imediato ter de ir a Fátima, visitar a sua cúmplice.

 

Lisboa, 07 de Janeiro de 2008

Companhia do Eu – Pedro Sena Lino (Formador)

 

Manuel Alonso

 

sexta-feira, 12 de março de 2010

Espero que a Primavera chegue mais cedo e confirme que o céu é azul

Espero que a Primavera chegue mais cedo e confirme que o céu é azul. Neste Inverno, com tantos dias de chuva, começo a duvidar que o céu, tal como sempre o conheci, seja ainda azul. Talvez tenha mudado de cor e agora seja cinzento, negro, às vezes um branco lamacento. Será que do céu, a partir deste momento, apenas cai água? Tenho saudades daqueles dias em que tudo está coberto de azul luminoso. Ou aqueles dias em que se vêm nuvens. O problema é que tanto o odeio como o desejo. Também gosto dos dias de chuva, mas esses são os dias de estar em casa, um chá quente nas mãos, a leitura de um livro ou ver um filme, daqueles antigos, tão a preto e branco como os dias de chuva. Ou então os dias de temporal, estar algures num bar à beira-mar e ver. Já senti medo de morrer demasiadas vezes, mas nunca à frente do mar. Acho que nunca irei morrer por causa dele. Gosto de ver o mar de Inverno, escuro e revolto, o som das ondas, respirar o sal.
Para cada mundo escrito tem de existir uma banda sonora. Por vezes até bastaria o som do mar de Inverno a bater nas rochas e a alisar a areia toda da praia. Já escrevi muito com esse som. A vida está sempre presa ao desejo e move-se por ele. Há muito tempo que não vejo o mar, este Inverno nunca o vi. Acho que, neste momento, um dos meus maiores desejos é voltar a ver o mar. Antes que ele acalme, se torne liso e receba os veraneantes que enchem a praia. Antes que os dias se tornem azuis: ver o mar. Espero que a Primavera chegue mais cedo e confirme que o céu é azul. Mas antes quero ver o mar a duas cores como nas fotografias antigas em que os poucos banhistas cobriam quase todo o corpo com roupa.
O medo mata mais. No parapeito da janela do meu quarto de infância viveu, durante anos, uma aranha amarela. Eu não tinha medo dela. Mas há sempre medo no que não nos é próximo e ela, um dia, desapareceu. A arrecadação, que ficava na cave, era o domínio do meu pai. É impensável escrever sem música. O meu pai não ouvia música na cave, quanto muito tinha um rádio onde ouvia os noticiários. Mas em casa ouvia-se sempre música, em discos de vinil, daqueles que eram grossos. Acho que nunca se iriam partir. Mais tarde os discos ficaram mais finos, mais frágeis e muitos partiram-se.
Gosto de inventar a existência de coisas nas nuvens que passam. Já senti medo de morrer demasiadas vezes. Para cada mundo escrito tem de existir uma banda sonora. O mar não me vai matar. Não vou morrer a olhar o céu ao som da banda sonora da minha escrita.
Susana Caldeira Cabaço

Querida Mãe

Querida Mãe

Provavelmente estranharás o facto de te estar a escrever uma carta quando nos vemos todos os dias. E hoje, com os telefones, os e-mails, o Facebook, quem é que escreve cartas? Eu escrevo. Escrevo quando a vergonha e o arrependimento calam a minha voz, tolhem os meus movimentos. Quantas vezes tentei eu dizer o que me leva agora a escrever estas linhas! Milhares, senão milhões! Foram anos de sofrimento atroz, posso garantir-te. O meu foi sofrimento em dobro, pelo meu acto e pelo teu próprio sofrimento. E foi essa dor que me tornou muda durante estes anos. Eu tentei, tentei falar, mas as palavras não saíam da minha garganta. Procurei em actos, gestos, castigos infligidos a mim própria para pagar a pena que mereço. Lembras-te das vezes que preferi acompanhar-te às quermesses da Igreja, sujeitar-me a passar horas na banca das rifas a entregar naperons em renda e bonequinhas de loiça às velhinhas surdas e teimosas, em vez de sair com os amigos, namorar, ir ao cinema? Certamente recordas todas as vezes que obedecia às tuas ordens, de não me rebelar por insistires em que usasse saia travada abaixo do joelho, blusas de folhos, carrapito na cabeça e óculos grossos quando a minha alma adolescente gritava por umas calças de ganga e uma simples t-shirt. E as aulas de acordeão quando suspirava interiormente em dedilhar harpa!
Matei a minha adolescência como castigo pelo meu acto. E ainda hoje me penitencio por ele porque a sua vileza é tamanha que qualquer castigo é inútil. Mas o que são estas contrariedades aos meus desejos impuros comparados com o mal que te causei? Meros nadas, que nada emendam. Ao fim destes anos, resta-me apenas um acto de contrição: revelar-te a verdade. Sim, porque já todo o sofrimento fiz cair em mim, mas o meu padecimento não chega para que a justiça seja reposta. Esta apenas o será com o fim do teu sofrimento. Porém, há anos que a dúvida me assola - sofrerás mais com a ignorância ou com a revelação de que fui eu, eu que saí do teu ventre, a autora de tão infame acto? Mas eu mereço, mereço ver cair em mim a ira daquela que me deu o ser e que só eu, com os meus actos, tornei vil.
Eis o momento da revelação, minha mãe, e coloco o meu destino nas tuas mãos porque nelas eternamente confio: fui eu que risquei o quadro do menino da lágrima. Sim, eu, Lúcifer de seis anos, a arma em riste no silêncio da sala, enquanto tu, mãe dedicada, fazias o jantar. E os meus dedos, cinco demónios enrolados naquele instrumento do inferno, traçaram como chamas aquele objecto de adoração. A vermelho, a cor do pecado, como um punhal espetado no teu peito este meu gesto.
Peço-te apenas perdão.
Tua Filha


Susana Caldeira Cabaço

E agora, algo completamente diferente!

Susana, esta é para ti... venha de lá esse pedido de desculpas!

quinta-feira, 11 de março de 2010

Laura

Laura vinha a cavalo logo pela manhã. Calcular a hora da sua passagem era como jogar aos dados.

longe, na curva do eucalipto, no sitio onde o avô do Sebastão bateu as botas, via-se uma nuvem de poeira, depois, a pouco e pouco, a imagem de amazona ia crescendo aos meus olhos e ao ritmo das batidas do meu coração.

Aquele instante - do cruzamento da sua marcha com o meu lugar de espectador - marcavam o inicio e o fim do meu dia. A partir desse momento iniciava-se a longa espera pelo próximo momento, o do dia seguinte.

Manuel Alonso
Do nosso "mais que tudo" que nos uniu, segue um presente para início desta aventura blogueira.
Susana Caldeira Cabaço


Namoro bem passado à moda de Machado de Assis

Deu-se o caso seguinte com um velho conhecido meu, homem quase da idade de Cristo, meditabundo mas feliz, que não dando para noveleta, bem servia a um folhetim – dessas que as velhas senhoras lêem ao conforto da lareira do Inverno, protegidas que estão já dos verões do corpo. Pois o caso, não sendo velho, continha uma daquelas aventuras no tempo que fazem as coisas perder a idade. Tinha-o encontrado frequentemente, a esse velho conhecido, de nome Feliciano, na Biblioteca Pública, sempre com aquel ar irrepreensível e perdido de explorador tropical de velharias. Mas notava a propensão de acabrunhadice no seu rosto – como se um fantasma fosse crescendo nele. Um dia em que nos encontrámos no fumoir, desavergonhei-me e perguntei-lhe:
- O meu amigo está bem?
Secundei logo que me perdoasse a pergunta; a nossa intimidade não ia para além de apertos de mão entre os fólios. Mas ele passou por cima das minhas mesuras e respondeu, o olhar cavo por muitas noites vigiadas:
- Olhe, meu caro, estou apaixonado.
Cumprimentei-o, como se faz sempre que o coração dá boas notícias (infelizmente, são sempre mais más que boas; sempre achei que andamos cá para aprender a pensar com o coração), mas ele negou-me o cumprimento:
- E eu que pensava que o meu amigo queria o meu bem. Não me cumprimente por isso.
- Mas então!?
- Olhe, estou apaixonado por uma coisa pela qual não se pode apaixonar.
«Uma coisa?!», pensei para os meus botões. Então Feliciano parecia estar dentro de um daqueles discursos papais contra os homossexuais, ou freudianos sobre os trios sexuais. Não esperava vistas tão curtas de um homem com as palmas dos olhos tão consumidas em velhos incunábulos gastos de vidas pornográficas.
- Estou apaixonado por uma mulher morta.
E, puxando-me para uma cadeira de verga, acendendo um cigarro depois do outro, como se não quisesse perder a chama interior em que se consumia, com o olhar fixo e as mãos revolteando, industriou-me no seu caso.
- Tudo começou com umas cartas achadas no meio de outros manuscritos. Coisa pequena, sabe, desinteressante até para a maioria. Mas eu notava que aquelas cartas, do punho de uma mulher, tinham sempre uns circulozinhos à volta de algumas palavras. Olhe, fiquei surpreso. Encontrei mais versões: na verdade, não fiz outra coisa em duas semanas. O fim de semana de intervalo custou-me mais que as noites de juventude agarrado ao fígado. E o que vim a descobrir? Que havia um código. E que o meu nome, o meu nome inteiro, vinha sublinhado e destacado nessas letras e palavras. Pode acreditar nisto? Eu não.
(continua)
Pedro Sena-Lino

Já cá estamos todos!