quinta-feira, 8 de abril de 2010

Kornélia

Já te disse que és perfeito?
Gosto da tua maciez. Nem os homens me prendem assim. Basta-me um agora outro depois para me saciar o pouco que não me podes dar. Depois, deixo-os ir quando acaba a curiosidade. Perfeito só tu e o teu viver silencioso. As conversas cansam-me. Irritam-me até. Exaspero ouvir falar de vidas cor de rosa e outras coisas que não existem. Gosto da intimidade destes nossos serões. Não pedimos nada um ao outro e damos muito pouco para a felicidade que alcançamos juntos. Eu faço-te festas e tu ronronas. Pragmáticos. Quanto eu a minha máquina fotográfica.
Em fracções de segundo, momentos roubados, esgares captados. Não hesito. Ao contrário do que pensam na redacção quando entrego as fotos - “Tens cá uma vaca, és tu e a Kornélia!”, odeio que me chamem isto, sabes - não é sorte. E é mais que o saber. É muito mais que escolher temas, a luz certa ou emoções no momento exacto do disparo. Sou eu. Aquele acto mecânico requisita o meu passado, tudo o que guardei para mim, os filmes que vi, os quadros que admirei. É por isso que não faço composições fotográficas. Apenas a cena. Seca como eu. Gosto de fotografar as pessoas como verdadeiramente são. Vidas simples. Dramas tramados. Sinto que estamos ligados por uma irmandade imposta que formata existências e sentimentos. Realidades a preto e branco. Atraem-me velhos de barba por fazer com sorrisos desdentados. Mulheres desmazeladas com filhos ranhosos pela mão. Desenraizados. Desconcertados. Acho que os compreendo, que são como eu. Assim que a vida nos permite, fugimos uns dos outros. Do que somos. Espécies sem cordão umbilical. Nem para nascer nem para viver. Trabalhamos para quem nos pagar. Qualquer um serve. Não queremos vínculos. Eu, nem o familiar sou capaz de manter. Um telefonema basta para cumprir a obrigação de filha. 10 minutos e não penso mais neles até ao próximo mês. Às vezes passam dois. Tenho a certeza que eles também não pensam em mim. Agora que estou longe percebo que já não nos importávamos quando nos separámos. Pergunto-me se tivesse tido irmãos se seria diferente. Talvez não vivesse tão sozinha. Assim, sou apenas um acidente de percurso. É por isso que a passagem dos dias não me traz saudades. Só alívio. Eu sei, gato. Engano-me com a verdade dos outros. Eu, nem como eles sou. O meu existir é oportunista, cola-se à imagem dos outros porque o meu envergonha-me. Sou indiferente e vazia. Ninguém me quer e eu não quero ninguém. Aprendi a não ter sentimentos. Agora já não me comovo com criancinhas raptadas e idosos mal tratados. Chego a ter pena de mim. Preciso da desgraça dos outros para me sentir melhor. Ainda assim, todos eles piores que eu, superam-me. Emanam uma luz que não encontro em mim. Sou baça, opaca, escura. Chego a ter medo. Chego a pensar que sou capaz de os matar por mero despeito. Imagino a máquina como uma arma e disparo furiosamente contra eles na esperança que a sua luz entre em mim e me faça acreditar que não sou louca. Que não sou diferente. Que não tenho defeito. A solidão é um preço muito alto que pagamos pela independência. E ninguém, em nenhum momento, devia estar só. É demasiado perigoso para o pensamento. Ainda assim, surpreendo-me com a minha máscara. Consigo ser popular. Os meus amigos até me acham divertida. Puras manobras de diversão. Não percebem que os observo. Que os fotografo para os estudar. Há dias que consigo aproximar-me da normalidade deles sendo simplesmente uma caixa de ressonância. Mas ao fim de algum tempo a tarefa pesa-me. A resistência que tenho a tudo o que me poderá tornar humana acaba por preencher todo o meu vazio. Tenho medo que seja bom. E o que é bom, acaba um dia. É quando os humanos sofrem. Gato? Estás a ouvir-me? Já nem tu me ouves......
Ana Alves Oliveira

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