terça-feira, 13 de abril de 2010

Manhã no parque

Há muito tempo que o dia não amanhecia tão frio. Tento aquecer as mãos gélidas na nuvem de bafo quente que a custo consigo exalar numa tentativa de ganhar algum fôlego e com ele desentorpecer os músculos e amaciar as articulações que recusam qualquer movimento como se pregos invisíveis as acorrentassem no castanho vermelho da cama húmida.
Cambaleante e trôpego, endireito a custo o tronco e procuro esticar as pernas ossudas que nadam dentro destas calças surradas e imundas. Este movimento lembra-me outro, não muito longe no tempo do calendário, mas tão afastado de tudo o que posso recordar como meu. Era o movimento de preparação para mais uma corrida à volta do parque. Era também o tempo em que o estômago se sentia rei.
Este pensamento acorda no coitado grunhidos de protesto pela falta do jantar de ontem e exigi-me agilidade na procura da sua satisfação.
Passo as mãos pelo cabelo num gesto vão de melhorar o meu aspecto. Sei que já foram belos estes cabelos. Ela não se cansava de dizer como eram belos e macios. Não passam agora de tiras hirsutas e ressequidas, quebradas pelo frio e pelo vento do tempo inclemente. Como foi que me volvi assim desmazelado? Como foi que esqueci? Ó ingrata, porque foi que acreditaste nele?
Olho em volta em busca de uma precária salvação. Normalmente ela vem dos caixotes do lixo. Ao afastar-me da árvore queimada pela geada da noite, dou de caras com um pacote esquecido ao lado de um caixote virado. Lá dentro estão certamente os restos da minha salvação, agita-se o meu pensar. Porém, que esquisito isto: pego no saco e sinto-me invadir por um mal-estar e uma vontade insistente de o abandonar. Estás parvo, ou quê, grita o estômago num refilar atrevido. Abre esse saco já e vê o que tem dentro! Ah, que bela maçã, baba-se ele suavizando o seu roncar. Trinca-a já. É uma ordem seca e autoritária que não me deixa espaço para subterfúgios ou fugas. Ainda para mais ela parece endereçar-me um convite disfarçado num brilho vermelho e apetitoso que me enfeitiça. Decido-me.
Fecho os olhos e, numa volúpia de sensações e sabores, cedo os meus dentes à penetração daquela macieza sumarenta e perfumada. Mas oh, que calor pastoso invade agora a minha boca e que dor lancinante me perfura e dilacera! Num arremesso instintivo livro-me do fruto maldito. Três pingas rubras mancham a alvura da geada que me gela os pés. Pressinto na ferrugem baça que me escorre da boca juntamente com um sabor adocicado familiar, ter sido vítima da minha, embora maltratada, beleza e juventude. Não muito distante parece-me ouvir em estridência uma gargalhada vitoriosa e um ser melífluo perpassa os arbustos vizinhos aliviado do peso do seu ódio secular.

A partir de um texto de uma das aulas de escrita

Irene Crespo

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