quinta-feira, 11 de março de 2010

Do nosso "mais que tudo" que nos uniu, segue um presente para início desta aventura blogueira.
Susana Caldeira Cabaço


Namoro bem passado à moda de Machado de Assis

Deu-se o caso seguinte com um velho conhecido meu, homem quase da idade de Cristo, meditabundo mas feliz, que não dando para noveleta, bem servia a um folhetim – dessas que as velhas senhoras lêem ao conforto da lareira do Inverno, protegidas que estão já dos verões do corpo. Pois o caso, não sendo velho, continha uma daquelas aventuras no tempo que fazem as coisas perder a idade. Tinha-o encontrado frequentemente, a esse velho conhecido, de nome Feliciano, na Biblioteca Pública, sempre com aquel ar irrepreensível e perdido de explorador tropical de velharias. Mas notava a propensão de acabrunhadice no seu rosto – como se um fantasma fosse crescendo nele. Um dia em que nos encontrámos no fumoir, desavergonhei-me e perguntei-lhe:
- O meu amigo está bem?
Secundei logo que me perdoasse a pergunta; a nossa intimidade não ia para além de apertos de mão entre os fólios. Mas ele passou por cima das minhas mesuras e respondeu, o olhar cavo por muitas noites vigiadas:
- Olhe, meu caro, estou apaixonado.
Cumprimentei-o, como se faz sempre que o coração dá boas notícias (infelizmente, são sempre mais más que boas; sempre achei que andamos cá para aprender a pensar com o coração), mas ele negou-me o cumprimento:
- E eu que pensava que o meu amigo queria o meu bem. Não me cumprimente por isso.
- Mas então!?
- Olhe, estou apaixonado por uma coisa pela qual não se pode apaixonar.
«Uma coisa?!», pensei para os meus botões. Então Feliciano parecia estar dentro de um daqueles discursos papais contra os homossexuais, ou freudianos sobre os trios sexuais. Não esperava vistas tão curtas de um homem com as palmas dos olhos tão consumidas em velhos incunábulos gastos de vidas pornográficas.
- Estou apaixonado por uma mulher morta.
E, puxando-me para uma cadeira de verga, acendendo um cigarro depois do outro, como se não quisesse perder a chama interior em que se consumia, com o olhar fixo e as mãos revolteando, industriou-me no seu caso.
- Tudo começou com umas cartas achadas no meio de outros manuscritos. Coisa pequena, sabe, desinteressante até para a maioria. Mas eu notava que aquelas cartas, do punho de uma mulher, tinham sempre uns circulozinhos à volta de algumas palavras. Olhe, fiquei surpreso. Encontrei mais versões: na verdade, não fiz outra coisa em duas semanas. O fim de semana de intervalo custou-me mais que as noites de juventude agarrado ao fígado. E o que vim a descobrir? Que havia um código. E que o meu nome, o meu nome inteiro, vinha sublinhado e destacado nessas letras e palavras. Pode acreditar nisto? Eu não.
(continua)
Pedro Sena-Lino

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