sexta-feira, 12 de março de 2010

Querida Mãe

Querida Mãe

Provavelmente estranharás o facto de te estar a escrever uma carta quando nos vemos todos os dias. E hoje, com os telefones, os e-mails, o Facebook, quem é que escreve cartas? Eu escrevo. Escrevo quando a vergonha e o arrependimento calam a minha voz, tolhem os meus movimentos. Quantas vezes tentei eu dizer o que me leva agora a escrever estas linhas! Milhares, senão milhões! Foram anos de sofrimento atroz, posso garantir-te. O meu foi sofrimento em dobro, pelo meu acto e pelo teu próprio sofrimento. E foi essa dor que me tornou muda durante estes anos. Eu tentei, tentei falar, mas as palavras não saíam da minha garganta. Procurei em actos, gestos, castigos infligidos a mim própria para pagar a pena que mereço. Lembras-te das vezes que preferi acompanhar-te às quermesses da Igreja, sujeitar-me a passar horas na banca das rifas a entregar naperons em renda e bonequinhas de loiça às velhinhas surdas e teimosas, em vez de sair com os amigos, namorar, ir ao cinema? Certamente recordas todas as vezes que obedecia às tuas ordens, de não me rebelar por insistires em que usasse saia travada abaixo do joelho, blusas de folhos, carrapito na cabeça e óculos grossos quando a minha alma adolescente gritava por umas calças de ganga e uma simples t-shirt. E as aulas de acordeão quando suspirava interiormente em dedilhar harpa!
Matei a minha adolescência como castigo pelo meu acto. E ainda hoje me penitencio por ele porque a sua vileza é tamanha que qualquer castigo é inútil. Mas o que são estas contrariedades aos meus desejos impuros comparados com o mal que te causei? Meros nadas, que nada emendam. Ao fim destes anos, resta-me apenas um acto de contrição: revelar-te a verdade. Sim, porque já todo o sofrimento fiz cair em mim, mas o meu padecimento não chega para que a justiça seja reposta. Esta apenas o será com o fim do teu sofrimento. Porém, há anos que a dúvida me assola - sofrerás mais com a ignorância ou com a revelação de que fui eu, eu que saí do teu ventre, a autora de tão infame acto? Mas eu mereço, mereço ver cair em mim a ira daquela que me deu o ser e que só eu, com os meus actos, tornei vil.
Eis o momento da revelação, minha mãe, e coloco o meu destino nas tuas mãos porque nelas eternamente confio: fui eu que risquei o quadro do menino da lágrima. Sim, eu, Lúcifer de seis anos, a arma em riste no silêncio da sala, enquanto tu, mãe dedicada, fazias o jantar. E os meus dedos, cinco demónios enrolados naquele instrumento do inferno, traçaram como chamas aquele objecto de adoração. A vermelho, a cor do pecado, como um punhal espetado no teu peito este meu gesto.
Peço-te apenas perdão.
Tua Filha


Susana Caldeira Cabaço

3 comentários:

  1. matei a minha adolescência!!! é do melhor que há. também quero o do velhinho que apaga o bolo de anos ... esse mais antigo.

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  2. Daqui a pouco este blogue é só meu, estou à espera de outros contributos. Só quando começar a ver outros textos é que ponho o velhinho do bolo de aniversário.

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  3. Susanaaaaaaaaa, malvada, riscaste o menino que tantos pais tem e mães por todo o lado. Que seria de nós sem ele, como poderiamos ver beleza no impar se o mundo só mostrasse pares?
    excelente texto susana.

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