sábado, 13 de março de 2010

Exercício de escrita criativa.

1 – Descrever alguém à procura de alguma coisa, concreta e essencial.

 

O sobretudo parecia uma mina de bolsos, o casaco de dentro também. Em cada bolso escondia-se uma surpresa, um novo objecto perdido para uma altura que não era esta. O nervosismo do homem, em busca do que procurava, contrastava com o rosto suave, o corpo magro, quase descontraído não fossem as mãos a saltar de bolso em bolso, à procura do objecto do seu interesse, da falta que lhe acontecia neste momento, daquilo que lhe travara o caminho do que se queria imediato.

 

Uns quantos encolheres de ombros, um olhar de fuzil ao espaço adjacente, como se algum dos bolsos pudesse ter saltado para a calçada e fosse urgente não o deixar fugir. Enquanto isso, apesar da espera, a Mulher olhava resignada; conhecia o final da história: havia sempre mais um bolso para procurar, mais uns resmungos para ouvir, as chaves acabariam por tilintar. A cena seria esquecida noutras cenas que se seguiriam logo após a necessidade de encontrar um novo tesouro, escondido naquele mar de bolsos.

 

2 – Encontrar um obstáculo que impede o encontro com a coisa concreta e essencial.

 

Um esgar, como o de uma dor que obrigava a franzir o rosto num trejeito que demonstrava desespero, estampou-se no rosto do homem. Um dos bolsos estava roto, traíra a sua confiança, colocava uma dúvida naquilo que era rotina. Procurava ainda, volta a certificar-se que o bolso de dentro, o destinado à carteira, não tinha chaves. Batia com as mãos ao longo do corpo, como sempre fazia, na esperança de que as malditas chaves gritassem de dor. Os ombros ossudos caíram, as pernas longas e desajeitadas deixaram de se bambolear ao ritmo da procura; nos olhos azuis, quase doces, de uma inocência assombrada, perpassava uma sombra, as narinas dilataram-se em busca de um suplemento de ar para fazer face ao imprevisto: um bolso roto, um dos que poderiam ser decisivos na resolução da coisa. Ainda mirou o forro, introduziu um dos dedos no buraco exposto, ficou a olhar por instantes, incrédulo desta súbita desavença com um dos bolsos. Estacou, deu-se ar de quem pensava.

 

3 – Interpretação interior.

 

Revirou os olhos em direcção à testa, como quem pede ajuda à memória. Pensou, repensou, bateu com os tacões na calçada, procurava um norte, um procedimento que desfizesse esta armadilha em que caíra. Olhou para a Mulher, ensaiou um olhar acusador, desistiu quando esta suspirou resignada, teve a certeza imediata de que dali não espiava o mal e que a culpa do bolso roto regressava a si ainda antes de terminar a primeira recriminação. Pensou pôr os bolsos de parte, concentrou-se num possível inimigo: alguém. Alguma coisa do seu mundo tinha tramado o destino das suas chaves. A duvida provocada pelo buraco incendiava o momento, tornando diferente, alargando os horizontes dos possíveis destinos do que procurava.

 

Recriminou-se, julgou chagada a hora de se emendar, o seu coração endureceu.

 

4 – A vida depende da resolução.

 

A Mulher trouxe-o à realidade, perguntou-lhe por “agora”, pelo que iriam fazer com a sua vida se as malditas chaves não aparecessem, como iriam entrar dentro do carro, fugir dali, daquela confusão, daquele maldito problema em que se tinham metido. O saco do dinheiro avisava da urgência de colocar distância entre o banco assaltado no quarteirão anterior e o automóvel imobilizado. O plano tinha sido estudado sem ter em conta os malditos bolsos, as chaves que se poderiam perder e comprometer o seu futuro, a sua vida de pessoas livres apesar do dinheiro roubado.

 

As sirenes ouviam-se. A polícia estava a chegar, os cinco minutos de trégua tinham-se escoado nos bolsos do homem.

 

5 – A personagem triunfa sobre o obstáculo.

 

O terror invadiu as suas vidas, o homem não tirava os olhos da mulher, rendia-se à evidência, à face prática desta que sempre tirara de apuros as suas vidas. A Mulher ajeitou o casaco, compôs o volume que escondia, passou a mão pelo cabelo, olhou em volta, dissimulada, tentando encontrar um qualquer passe mágico antes que desatassem a correr, espavoridos, completamente derrotados por uma chave, a chave que lhes configurava a vida, talvez a morte.

 

Censurou a sua fé, fez votos, rogou pragas que não se ouviam, daquelas que só as mulheres ousam em vista de uma contrariedade séria, dramática como aquela. Encomendou-se à Virgem, prometeu dez por cento para a caixa das esmolas, arrependeu-se da heresia; olhou para dentro do automóvel e viu as chaves penduradas da ignição. Soube de imediato ter de ir a Fátima, visitar a sua cúmplice.

 

Lisboa, 07 de Janeiro de 2008

Companhia do Eu – Pedro Sena Lino (Formador)

 

Manuel Alonso

 

Sem comentários:

Enviar um comentário